Alma Negra

Essa é uma história ideada por mim, autora do blog, embora narre alguns acontecimentos reais, a história não é verídica. Essa é uma narração minha, porém, não recebo fins lucrativos através da mesma. Os personagens principais foram criados por mim, também.
Deixe seu comentário, se gostou ou não!! xoxo 
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Capítulo 1
Outono de 1962, os Estados Unidos da América está em guerra. Negros e brancos erguem seus punhos e voz contra uma sociedade racista, conservadora e capitalista. Todos os dias ouvimos pelo rádio que mais e mais pessoas se juntam as causas e partidos liberais. Muitos chamam de a ''Grande Revolução''. Nas cidades, negros e brancos dão-se as mãos e bradam discursos a favor da Liberdade...
Onde vivo, porém... é comum vermos negros sendo espancados e largados em valas para morrer. são tratados como bichos, desprezados e feitos de escravos. Embora  a muito, aja leis contra escravidão, aqui, são os donos de terras, ricos mesquinhos e charlatões com poder, que regem as leis, baseadas em abuso e escravidão. Embora aja grande movimentação de negros protestantes em Washington, Nova York, e outras grandes cidades....
Posso ver acesa a chama contra o racismo nas grandes cidades, sei que isso está acontecendo, sei que essa luta precisa ser vencida... Mas não vejo essa chama em nenhum lugar por toda a imensidão desses campos, continuo vendo negros trabalhando como cavalos como se nada estivesse acontecendo lá fora. Ainda vejo as crianças e mulheres negras sendo abusadas... Sei que aquela chama está acesa dentro de mim. Mas sei que isso não é o suficiente...
Continua#
Meu nome é Lize, mais precisamente; Elizabeth Woods. Meu pai é fazendeiro, planta algodão, como praticamente todo mundo nessa cidade. Nasci em uma manha de outono. Quando o algodão está quase pronto para ser colhido. Mama costumava dizer que eu era como o outono. Um raio de luz dourado. Mas isso foi antes dela se for. Minha mãe morreu três anos depois do meu pai nascimento, no meio do inverno, sua estação favorita. Ela não suportou ao parto de minha irmã mais nova, Luna. Desde esse ocorrido, os dias tem sido sombrios na fazenda. Meu pai culpou mama, disse que ela não foi capaz de salvar a vida de minha mãe... Já se passaram tantos anos. E com eles, a culpa se transformou em raiva, um sentimento sego e egoísta que destruiu o resto de vida que sobrou dentro dele.
Já é começo de outono e tempo de colheita, assim, a fazenda se enche de trabalhadores, e a cada dia mais e mais negros desembarcam dos caminhões. Com suas mãos calejadas e rostos amargurados, vejo em cada um deles o peso de uma vida que ninguém neste mundo merece.
Tenho raiva de meu pai, sinto ódio quando o vejo bater em um deles, qualquer que for. Mama me ensinou que todos somos iguais, que a cor da pele não diz nada sobre nós. E que não devemos sentir desprezo pelo outro só porque é diferente. Mas não consigo segurar. Odeio meu pai pelo que ele fez, odeio cada tapa que ele desferiu contra o rosto de mama. Odeio cada vez que ele a obrigou a deixar suas mãos dentro de um balde de água fervente só por ter quebrado um prato ou copo de mamãe. Sinto repulsa de pensar que minha irmã esteja se tornando assim...
- O mundo nunca será perfeito, minha querida. - dizia mama com seu sorriso dócil - Homens sempre farão mal, mas você minha pequena, você é diferente, eu posso sentir isso. Aqui.
Ela colocava a mão em meu peito frágil de menina,e fechava os olhos, como se pudesse enxergar meu futuro, como se pudesse ver um segredo ali guardado.
- Lize, venha cá. - a voz rouca de meu pai soa pelo corredor até a porta de meu quarto. Levantando a cabeça do parapeito da janela, fecho as cortinas amarelas e desso apresada as escadas.
Como sempre a essa hora, ele está na varanda, cachimbo entre os dedos e olhar perdido no horizonte.
- Sim, papai? - digo, mas ele não olha para mim.
Suspirando, ele se põe de pé e recoloca seu velho chapéu preto. - Amanha mais um caminhão desses negros vai chegar, e eu vô ta na cidade. - sua voz cospe desprezo ao se referir aos trabalhadores negros - Quero que fique de olho pra que esses desgraçados não façam besteira.
Meus olhos se enchem de lágrimas quando ele se vira e entra na casa, ainda sem olhar para mim.
Mama se foi a dois anos. Meu pai prometeu matá-la depois que minha irmã disse que ela a tinha batido no rosto. Ele ficou tão furioso, mais do que o normal... Mama veio ao meu quarto á noite para se despedir, disse que só não tinha partido antes por minha causa, mas que ela deveria ir... Mama sempre foi tão amável, o único lugar onde achei refúgio e carinho. Eu a amava, e ainda a amo. 
- Olha só Lize! - Luna corre pela sala de estar, dando pulinhos de alegria. Tem em mãos uma de suas revistas de fofoca e a esfrega na minha cara, depois beija a capa e suspira. - Nunca me cansarei de olhar esse rostinho lindo...
Reviro os olhos e continuo a mexer o chá. O cheiro quente de menta se espalha pela casa até a varanda, onde meu pai conversa com o capataz. Os dois tem discutido bastante nesses últimos dias.
- O que aconteceu meu pai? -pergunto assim que ele entra.
- Nada da sua conta. Só estávamos botando conversa fora, coisa de homem.
Olho de relance para a rua, tentando esconder a expressão de meu rosto. As fileiras muito bem alinhadas de algodão balançam com a brisa de fim de tarde, revelando os raios dourados do sol por detrás dos tufos branquinhos como neve. Negros suados e vestidos com seus trapos vem e vão por entre as trilhas, esgueiro os olhos por seus rostos, e quando encontro o que procuro, não posso evitar sorrir.  
Continua#
Durante o dia o trabalho é duro, há pouca água e pouca comida. Durante a noite, um colchão velho e mau cheiroso num barraco qualquer, ótimo emprego. Mas pra quem não tem dinheiro e é negro, não se pode esperar muito mais. Não posso reclamar, na verdade, sou forte o bastante pra aguentar alguns meses nesse trabalho, juntar dinheiro e ir embora de uma vez desse fim de mundo, mas vejo as pessoas com quem trabalho, e só ai entendo porque continuam aqui. Elas já não tem forças, talvez ainda sintam esperança, mas já não podem ou não conseguem mais lutar...
Por mais que eu goste de morar aqui, não existe uma alma vivente que se prese que realmente queira trabalhar para esses brancos ricos e canalhas. Por isso, o mais rápido possível, vou dar o fora daqui. O que espero não demorar muito...
- Jeremy, - a voz rouca de Dinks me tira dos meus devaneios - Atenção garoto.
com um maneio discreto com a cabeça, ele aponta para alguém a minha esquerda. E lá está ela. De novo. Observo seus olhos atentos e rápidos acompanharem os trabalhadores ao seu redor. Por um segundo, seus olhos azuis como o céu, me fitam, cautelosos. Seus lábios se curvam rapidamente em um sorriso, e então, ela não está mais lá.
Volto minha atenção aos pequenos tufos de algodão em minhas mãos. Branco. Como sua pele. Um arrepio sobe por minha espinha. Todos eles são iguais: ricos, mesquinhos e arrogantes. Ela é igual a eles. Repito isso em  minha mente, como uma espécie de mantra. Quanto mais eu faço isso, mais me convenço que estou errado. E eu não sei porque...
***
Jogo mais um saco dentro do caminhão já quase cheio. Limpo a testa com a manga da camisa, onde escorre suor. Olho para o sol e franzo as sobrancelhas, quando será que teremos uma trégua? Nos últimos dias o sol tem sido nosso inimigo, queimando as nossas costas e braços.Jogo um saco sobre os ombros mais uma vez e volto ao caminhão, o velho Dinks me sorri e acena com a cabeça, oferecendo um copo d'água.
- Deus é nosso amigo! - exclama ao terminar de beber, um fio de água escorre por seu rosto barbudo. - Ele nos dá água meu filho!
- Não sei se acredito em Deus, meu amigo... Ou Deus tem algo contra mim! - forço uma risada, mas ele me olha com pena.
- Nós é que não somos amigos Dele, Jeremy... Nós temos algo contra Deus, e não Ele.
Pousando o caneco sobre um maço de grama seca, ele aperta meu ombro, sorrindo põe seu chapéu de palha já bastante gasto e volta ao trabalho. Bebo o resto da água de meu caneco e quando estou voltando o patrão me chama.
- Leva essas ferramenta pro celeiro, não quero que nenhum desses negros me roubem mais isso... - ele bufa a fumaça do palheiro em meu rosto e sorri. - É melhor que isso esteja lá amanhã, ouviu seu negro desgraçado?
Serro os punhos, respirando pesado, sentindo a raiva crescer dentro de mim.
- Sim, patrão. - respondo, dando-lhe as costas.
Junto as ferramentas do chão e caminho apreçado até o celeiro. Meu pai levou dois tiros no peito por ter desrespeitado seu patrão, não quero acabar como ele, então faço o máximo de esforço possível pra não acabar como ele, largado morto em uma vala qualquer. Assim que coloco as malditas ferramentas no lugar, avisto com o canto dos olhos um vestido laranja claro tremular por detrás de um fecho de palha. Assustado, viro-me e me deparo com um corpo esguio adornado por um vestido simples cheio de flores bordadas, sentado atrás de um fecho de palha já bem seca. Os cabelos louros e ondulados estão caídos sobre as paginas de um livro grosso e já gasto. Sua boca está torcida em um sorriso contido e bastante divertido. Fico completamente parado, prendendo a respiração, temendo que ela se assuste e que seu sorriso desapareça de seu rosto ao me ver. Esse sorriso...
lentamente, ela ergue a cabeça. Quando me vê, seus olhos se arregalam e seu sorriso se torna ainda maior.
- E-eu... Desculpe, eu... - gaguejo
- Tudo bem. - sua voz sai baixa e pausada, como se ela temesse me assustar. - Você gosta de ler?
sua pergunta me pega de surpresa. é uma conversa tão formal, normal e íntima que me assusta. é como se ela já me conhecesse e fosse normal perguntar coisas desse tipo. Balanço a cabeça confirmando, quase que imperceptivelmente.
- Gosto desse livro - ela ergue a capa, para eu poder ler. '' A Cidade das Flores, Augusto Abelaira''. - Já o li várias vezes. Se quiser, empresto pra você.
Minha expressão de espanto a faz rir, como se ela se toca-se de alguma coisa só agora. Que bem poderia ser: ''Meu Deus, ele é negro!''.
- Desculpe, acho que não me apresentei. - se colocando de pé, ela sacode o vestido e estende a mão. - Sou Lize.
Olho para sua mão e dou um paço para trás. - Desculpe, mas eu... Sou negro e não tenho permissão para tocar na Senhorita.
Sua expressão muda rapidamente, e seus olhos ficam de um azul incrivelmente profundo. Ela põe a mão na cintura e bufa. - Não gosto que fale assim!
Parabéns Jeremy, você acaba de perder seu emprego e merece uma surra do pai dela! - Desculpe...
- Eu só queria te cumprimentar, e não me importo se você é negro, branco ou azul. Não sou racista e não gosto que pensem que sou.
Minha boca provavelmente estava bem aberta, porque nunca na minha vida ouvi alguém dizer coisas assim. Ainda mais um branco. Foi como se ela estivesse me xingando por eu ser negro e saber que os brancos não gostam de mim.
Saio do celeiro depressa, esperando que  ninguém tenha percebido minha ausência. Tento livrar de minha cabeça as imagens daquela garota estranha e incrivelmente... Adorável, de minha mente. Mas a todo instante, o azul profundo de seus olhos invadia meus pensamentos, causando uma mistura de raiva e confusão em meu peito.
Continua# 
- ...os boicotes de ônibus no Alabama servem como incentivo para outros negros que seguem protestando e se recusando a obedecer leis e... - meu pai desliga o radio com raiva. ele pragueja ao se levantar da cadeira e, descendo os degraus da varanda, vai em direção ao celeiro. Nesses últimos dias, várias noticias vem retratando os protestos dos negros, que parecem serem cada vez mais intensos. Tento ouvir as noticias, mas meu pai sempre desliga o radio na hora do jornal. Estou extremamente nervosa. Fico olhando para todos os lados sempre que ando pelo pátio ou pelo campo. Tenho medo. Não posso imaginar o que meu pai faria se soubesse.
Tremo só de pensar. Por isso sou cuidadosa, e ele também é. Pois tem mais a perder. Luna desce as escadas batendo os pés.
- Esses negros malditos! - vocifera - Sempre deixam o papai nervoso...
Sua voz fina continua a ressoar em meus ouvidos, mas afasto o pensamento de suas palavras maldosas. Saio para a varanda, deixando Luna gritando comigo para trás, e quando a porta se fecha atrás de mim, suspiro.
- Você é especial Lize Woods. O destino tem um plano pra você! - a voz de mama ecoa em minha alma, como se trazida pelo vento.
- É tão difícil sem você aqui mama... - sussurro. E eu espero que o vento leve meu clamor para longe, para junto de mama, e assim, ela poderá vir correndo e me deixar chorar mais uma vez em seu colo.
***
O passar dos dias tem sido  tão monótonos e frios, o meio do outono se aproxima, mas o inverno já dá as caras e o vento cortante castiga meu rosto desprotegido. Jeremy já espera por mim na clareira, abaixo da figueira já bem velha. Levo contra o peito meu livro preferido, ao qual temos lido nas ultimas semanas. Ele me contou um dia sobre seu desejo de fazer faculdade, mas que primeiro teria que terminar os estudos em uma escola, já que havia parado á dois anos e meio. Sua escrita é boa, mas sua leitura não. Digo a ele que é falta de prática, por isso, dou aulas para ele quase todos os dias. Não sou uma excelente professora como mama, mas não sou de toda ruim. Tive que implorar para que ele permitisse que eu desse aulas á ele. Que só permitiu por medo de que eu iria maná-lo embora...
- Então... - ele franze a testa e me olha, como se percebesse que não estou prestando atenção á sua leitura. Balanço a cabeça, e ele continua - Então, com suas mãos pequenas e frágeis, ela o toca pela primeira vez...
Gosto de ouvir a voz de Jeremy. Ela é serena, com um tom grave masculino que eu adoro. E quando lê, seus lábios ficam apertados, e sua testa, franzida. Suas mãos nunca permanecem paradas, estão sempre em movimento, seja torcendo o tecido da calça gasta ou arrancando a grama ao seu lado.
Fico maravilhada ao observá-lo, mas, ao mesmo tempo, assustada. As vezes, quando nossos braços ou pernas se tocam, fico arrepiada, e sei que minhas bochechas ficam vermelhas...
- Você não está prestando atenção em mim! - ele fecha o livro com um baque. O que me assusta. - Desculpe...
- Não, tudo bem, você tem razão. - digo, suspirando. - Estou aflita e... Deixe pra lá. Pode continuar se quiser.
Sei que ele não aceitou ter aulas comigo por respeito, e não tenho a ilusão de pensar que ele não me odeie. Vejo o desprezo em seu olhar, o modo como seu corpo se contrai quando eu o toco sem querer. Por mais que eu tente me aproximar dele e quebrar essa barreira entre nós, meus esforços não tem dado em nada. Ele sabe esconder bem seus sentimentos, pois as vezes quase acredito que ele está confortável com minha presença, mas um minuto depois, quando pergunto qualquer coisa sobre ele, a barreira se mostra mais uma vez, indestrutível. Muitas vezes decidi que iria parar com essa loucura, pois sei que Jeremy está aqui por medo e não por sua mera vontade. Só que, não consigo. Me parece egoísmo forçá-lo á isso, mas... Seu jeito calmo, apesar de tudo, e a forma como ele me faz sentir!
- Não. - pisco. Jeremy está, pela primeira vez, olhando diretamente para mim. - Não quero continuar.
Um sentimento de decepção me invade. Baixo a cabeça e cruzo as mãos. pigarreando, digo. - Tudo bem se você não quiser continuar. Eu entendo e peço desculpas.
Não consigo olhar em seus olhos. Sei que ele está olhando direto para mim, mas não me atrevo a erguer o olhar. Fico alguns minutos sentada a sua frente, só então percebo que ele quer que eu saia. Levanto, pegando o livro de suas mãos, sem tocá-las, e simplesmente viro-me pra ir embora.
Como sou tonta. Nem todos são como mama. Nem brancos nem negros. Talvez nem eu seja.
- Eu não disse isso Lize. - Jeremy está de pé agora, perto o suficiente para eu ouvir sua respiração.
Meu corpo fica retesado, completamente imóvel. Bem, agora eu sei que ele não esqueceu meu nome.
- Eu só quis dizer que não queria continuar lendo. - seus olhos verdes fitam os meus quando me viro. - E não parar de vez com as aulas.
- Oh, sim. Desculpe. - me sinto uma idiota completa. Parabéns Lize, ele deve pensar que você é burra. - Então, o que quer fazer, treinar a escrita talvez? eu trouce papel e caneta... Reviro o bolço do avental, procurando o pequeno lápis de carvão que ganhei de mama.
- Não sei... Podemos só - ele da de ombros, e é só então que percebo que ele está nervoso. - Conversar?
Pisco duas vezes, depois franzo a testa, preocupada. - Você está doente?
- Não, o que!? - ele ri. Espera. Ele rio, rio de verdade!
- OK, vamos conversar então. O que quer saber?
Jeremy se senta novamente, desta vez mais relaxado. - Sobre coisas.. Sobre você, talvez.
Agora é minha vez de rir. - Tá bom! - digo, incrédula, até ver em seu rosto que ele queria mesmo saber algo sobre mim. O que, acredite, me deixou pasma.
Reviro minha mente a procura de algo que não seja apenas ''Sou Lize Woods, tenho 17 anos e vivo numa fazenda de algodão. Minha mãe morreu a vários anos e meu pai nunca me olhou nos olhos desde que me conheço por gente! E você?''
- Acho que não tem nada de interessante sobre mim que você queira saber! Acredite. - tento sorrir, para esconder a magoa que sinto por causa disso.
Ele não se dá por convencido e ergue a sobrancelha direita. É estranho esse outro lado dele, tento me acostumar com Jeremy sendo legal e simpático e não apenas sério e sem demonstrar emoção alguma. Isso causa uma reviravolta enorme dentro de mim, o que dificulta meu raciocínio para responder a sua pergunta.
- OK, é. Sou Lize Woods, tenho 17 anos. Gosto de ler e... - meu Deus, e o que? - ... Minha cor favorita é azul, como o céu da primavera. Adoro os dias de neve em que os galhos das árvores ficam completamente congelados e ao por do sol, quando os raios estão baixos, eles refletem no gelo branco, o que eu acho lindo. Gosto da primavera por não ser muito quente nem muito frio, mas também gosto do calor do verão porque eu posso me refrescar no riacho, o que me faz lembrar de mama... - paro ao perceber meus olhos cheios d'água, disfarço o quanto posso, mas sei que ele já me viu chorando. - E sou um pouco emotiva!
O silencio que se segue me deixa nervosa, e percebo que Jeremy está pensando, como se decidindo algo. Mordo o lábio inferior esperando ele dizer alguma coisa.
- Meu nome é Jeremy, tenho 18 anos e... - ele sorri - Juro que não tem nada de interessante sobre mim que você queira saber!
#Continua
Durante algumas semanas me forcei a não demonstrar simpatia por Lize. Fiz com que ela pensasse que estava tendo aquelas aulas por obrigação. Os primeiros dias, até que foram por medo de perder mais esse emprego, mas depois, quando percebi que ela era sincera no que dizia, quando seu jeito meigo me tocou profundamente, comecei a gostar, e até mesmo ansiar por suas aulas. Me controlei por algum tempo, mas porque fingir antipatia se ela era tão bondosa e sorridente comigo, o tempo todo? Por fim, decidi que não era justo. Eu conheço os riscos. Posso perder o emprego, meu Deus, posso perder minha vida! Mas, bem dentro de mim, no fundo do meu amago, algo me diz que posso confiar nela. Lize é diferente... Sua aparência mais que formidável, seu sorriso largo e caloroso, seu jeito de andar e até mesmo de cantarolar quando está distraída, seus olhos profundos e intensos... Essa garota é um mistério para mim. Nunca, nenhuma menina havia chamado minha atenção como ela. Lize é especial, vejo isso em cada pedaço do seu ser. Há algo nela. Posso sentir. Fico pasmo de pensar que a conhecer tão bem. É como se nos conhessecemos a vida inteira!
Lize é para mim um doce veneno, uma maldição a qual desejo.
Que enche meus olhos, mas que me é impossível tocar.
***
Estou tendo alguns problemas por causa dos meus sumiços. O velho Dinks desconfia que estou aprontando alguma, e sei que não vou convencê-lo do contrário. Faço o possível para não ser pego. trabalho mais duro e me esforço para conquistar novamente sua confiança. Não vou as aulas á dois dias e também não vejo Lize.
O patrão parece estressado ultimamente. Parece até doente. Já o vi gritar com Lize muitas vezes, já levei alguns tapas e chutes dele essa semana também. Todos estão com medo. Se ele quiser pode matar um a um de nós que ninguém vai se importar, ele pode mandar as famílias que aqui moram embora pra morrer de fome, que ninguém vai perceber. A colheita do algodão já está no fim, assim como o emprego de muitos negros. 
- Jeremy, você já soube? - Murilo aproxima-se sorrateiramente, suas mãos ágeis colhem o algodão com uma rapidez admirável. - Martin Luter King, o pastor, vai fazer alguma coisa bem grande, uma tal de marcha pela liberdade ou sei lá o que daqui a alguns meses. - ele para o que está fazendo e me olha, sério - Eu vou, Jeremy. Não aguento mais viver aqui! quero fazer parte de alguma coisa. Quero liberdade para nós, para nossos irmãos negros! - ele aproxima o rosto do meu. - Você deveria vir comigo, Gemy...
- Você sabe que eu não posso, Murilo! 
- É claro que pode, manda esse branquelo filha da mãe pro inferno e venha comigo!
Paro de olhar para seu rosto e continuo a colheita. - Não dá... - Murilo fica alguns segundos em silêncio, e quando fala, é com desprezo na voz.
- É por causa da garota, não é? - Serro os punhos e me levanto, olho bem em seus olhos. - Eu vi vocês dois no campo, Jeremy. 
- Você não tem nada a ver com isso! - vocifero.
- Ela vai acabar matando você, meu amigo. Vai matar você... 
Dinks assovia, chamando por Murilo, que olha sobre o ombro e acena. - Tenho que ir. - ele pousa as mãos em meus ombros, posso ver sinceridade em seu olhar. - Ainda não é tarde, pode vir comigo se quiser.
Faço lentamente não com a cabeça. - Para onde você vai?
-  Washington. Há muito trabalho por lá, Gemy. Precisamos quebras as regras se quisermos vencer... Black Power é a saída meu irmão! 
Murilo está correndo entre as fileiras de algodão, seu destino é um velho ônibus estacionado atrás do celeiro, onde vários negros embarcam, um atrás do outro. Há também algumas mulheres, todas com roupas pretas e de couro. No momento em que o último passageiro entra no velho ônibus, antes que o motorista de a partida, ouço um disparo de espingarda a minha direita.
Muitos negros gritam e se abaixam para se defender. Procuro entre a vastidão branca de algodão o atirador, mas a primeira coisa que vejo é Lize, correndo em minha direção, quatro fileiras de distância. 
- Lize! - chamo.
Ela olha de relance para mim, seu rosto contorcido de angustia. Corro na direção em que ela está indo e lá na frente, seu pai está com a mira apontada para o motorista do ônibus, que tenta dar a partida. Depois de engasgar algumas vezes, o motor liga com um ruido alto. Mais um tiro é ouvido e o vidro do carro estoura, alguns dos passageiros gritam. Mais duas balas acertam a lateral ônibus, agora pegando velocidade, quase na estrada.
- Papai! - grita Lize, chegando até ele. - O que está fazendo?
Paro instintivamente. O que estou fazendo? 
Estou apenas a alguns passos dos dois quando o pai de Lize acerta seu rosto com a coronha da arma. Seu corpo cai estendido sobre os ramos do algodão, e seu corpo se sacode quando ela soluça. Dou dois passos largos em sua direção, meus punhos fechados e meu corpo fervendo. Antes que eu poça fazer algo, sinto Dinks segurar-me pela cintura, seus braços me puxam para trás.
- Não seja ingrata, Lize! - berra o patrão - Você não é como eles! Esses porcos mataram sua mãe, a tiraram de mim! - ele aponta a espingarda para mim e Dinks, depois para os negros que ousaram se aproximar. - Aquela velha maldita fez o que com você, hein? Disse que somos iguais? - pegando o rosto da filha que soluçava, ele ergue seu olhar para mim. - Olhe para ele! Ele é igual a você? É igual a mim?
Ninguém nem mesmo respira nesse momento. Não ousamos fazer nenhum movimento brusco. Quando Elizabeth se coloca de pé e vejo o vergão vermelho com sangue em seu rosto, é como se o ar escapasse de meus pulmões. O patrão arregala os olhos, como se percebesse o que acabara de fazer. Deixando a arma escorregar de suas mãos, ele abraça a filha. A pancada não acertou seu olho, mas a lateral de sua cabeça está com um ferimento bastante preocupante.
- Vamos papai, hora de tomar seu remédio... - a voz de Lize sai calma, cheia de carinho. E puxando-o pela mão, guiou-o até a varanda, na casa.
Pouco a pouco, os negros vão voltando ao trabalho, Dinks tenta me acalmar, dizer que o velho está louco e que os dois que se entendam. Mas não consigo esquecer o rosto cortado de Lize de minha mente. Por um segundo me arrependo de não ter ido com Murilo, mas não posso desistir... Há algum tempo travei uma batalha. E essa batalha é aqui, dentro e fora de mim. Tenho que ficar, vencer essa luta não salvará apenas a mim, mas a Lize também.
#Continua
Capítulo 2
- Ele se recusa a tomar o remédio, doutor. - digo assim que ele termina de examinar papai.
Meu pai resmunga para o medico que ele não precisa de nada dessas porcarias. Com um olhar sério ele me chama em um canto do quarto.
- Você pode mandar ele para uma causa de repouso - sua voz é baixa, e sinto seu bafo de Whisky - Se quiser é claro!
- Não posso fazer isso doutor. - seus olhos se desviam para meu decote. - Ele é meu pai. - digo, ríspida.
- Ele agrediu a senhorita, quem sabe o que mais ele fará?
- Deixe que disso cuido eu! - Abro a porta do quarto para ele ir embora.
- Teimosa igual ao pai! - Colocando o chapéu ele se despede, dando passagem a minha irmã que caminha, apressada. 
- Como está o papai, Lize?
- Vai indo... - com seu jeito dramático, ela revira os olhos para mim. - O medico receitou outro remédio, disse que esse vai funcionar.
- Ora, irmãzinha, deixe de ser careta, a medicina hoje é muito avançada, ele deve saber o que faz! - com um sorriso irônico, ela vira o rosto, sentado-se na beira da cama de papai.
- Já volto. - digo, saindo sem fazer barulho.
A chuva bate contra o vidro das janelas, me assustando. Os galhos das árvores dançam com o vento que uiva em meus ouvidos, a chegada do inverno é sempre brusca por aqui. Enquanto caminho pelo corredor escuro, ouço ao longe, vozes alteradas; descendo as escadas depressa, atravesso a sala de estar e abro com tudo a porta da varanda, a chuva açoita meu rosto e minhas pernas. meu vestido solto cola no corpo, encharcado, nos meus primeiros passos. Os trabalhadores correm de um lado para o outro, gritando ordens...
- Oh, não.... - uma pluma pequena de algodão passa por mim, carregada pelo vento forte. 
As lonas que cobriam os sacos de algodão nos caminhões balançam pelo ar, espalhando tufos brancos por toda parte. Homens e crianças correm pelo campo, tentando juntá-los.
Jeremy está entre eles e quando seus olhos cruzam com os meus, ele sorri abertamente quando olha para a região abaixo dos meus ombros. Sinto minhas bochechas esquentarem, mas sorrio também. 
- Quando teremos nossa próxima aula, senhorita? - sem perceber, ele se aproxima de onde estou. Seus olhos travessos vagueiam por minhas pernas descobertas. 
Não falo nada, apenas dou de ombros, continuando a juntar os maços de algodão. Meu pai com certeza vai ficar louco quando ver isso. O algodão não pode ser vendido molhado, e uma safra inteira seria perdida... 
- Meu pai não vai gostar nada disso... - murmuro.
- Você está bem? - sei que ele se refere ao que aconteceu a alguns dias, mas não quero falar sobre isso. 
- Estou... - grito por cima do barulho da cuva, mas antes que eu termine de falar, sua mão segura meu rosto, expondo uma marca rocha e com sangue seco no lado direito de minha face. - Vou ficar bem. - concluo.
A chuva continua caindo com fúria, castigando a terra seca. Fios de água gélida escorrem pelos meus braços e cabelo, e pela primeira vez, paro para pensar no que realmente Jeremy significa para mim. Não posso dizer que temos um relacionamento, nem mesmo de amizade. Fico sempre tão confusa quando penso nisso. Tenho medo... 
Nas ultimas vezes que nos falamos, ele estava tão diferente; interessado, atencioso e engraçado. Agora, ao olha-lo debaixo de uma chuva torrencial, com um saco em mãos, catando tufos de algodão pelo chão, não sei dizer quem ele é. Ou de onde veio. A única coisa que sei, é que: por mais distante que ele fique de mim, sempre tenho a impressão de que ele me observa. Que ele sempre está por perto...
***
- Merda! - digo ao erguer o olhar para o campo.
Não adianta de nada o que estamos fazendo, essa safra de algodão já era. A chuva e o vento espalham algodão por todos os lados, lembrando um dia de neve. O patrão vai ficar uma fera, e a maioria de nós será demitido, com certeza. Como se tivéssemos culpa. Quando o saco de algodão já está cheio, começo a dizer para Lize que não adianta de nada nossos esforços, mas ao erguer o olhar, não a vejo em lugar nenhum. Corro até o celeiro, onde já estão abrigadas mulheres e crianças; o vendaval destruiu alguns barracões, deixando-os sem teto para se proteger da chuva. 
Largo o saco em um canto seco do celeiro, ainda procurando Lize entre as pessoas, que chegam aos poucos, e tentando torcer minhas roupas molhadas. O ar frio do inverno começa a dar as caras, e hoje é uma noite realmente fria. Algumas crianças se encolhem no colo de suas mães, outras deitam sobre a palha seca espalhada nas baias fazias.
- Jeremy! - Lucas, um rapazinho magrela de 10 anos, puxa minha camiseta encharcada, chamando minha atenção. - O que ela está fazendo? - ele aponta o dedo comprido na direção fora do celeiro, onde já não se vê ninguém tentando juntar o algodão. Apenas, lá longe, um borrão branco, movimentando-se no meio das fileiras caídas. Estreito os olhos para ver melhor.
- Mas o que... - quando finalmente vejo quem é, abro passagem por entre os curiosos que observam Lize no campo; alguns até mesmo riem e zombam.
- Olha lá papa - ri Lucas - Não é a filhinha do patrão?!
Um relâmpago clareia o céu e um estouro faz com que muitos dentro do celeiro gritem. Algumas das telhas dos barracões voam para longe, as luzes piscam e vejo a filha do patrão, Luna, sair para a varanda, procurando seu cachorro peludo, que chora e arranha a porta da casa. Fico esperando que ela veja ou ao menos note Lize sozinha no meio da tempestade, mas assim que pega seu cão, entra, deixando a porta bater atrás de si. 
Lutando com minha própria consciência, corro para o meio da tempestade. Os pingos de chuva batem contra minhas costas e sinto meu corpo se arrepiar de frio. 
- Lize! - chamo, mas é impossível ouvir minha voz. Continuo a correr, me aproximando da figura abaixada de Lize, a barra de seu vestido está sujo de lama e seu rosto, escondido atrás de seus cabelos molhados. Mais um raio clareia o céu, e o estouro é ensurdecedor. Escorrego na terra lamacenta, quase caindo. 
- Lize! - ao ouvir minha voz, ela ergue o rosto sujo de terra. - O que está fazendo? Você está louca, vai ficar doente!
- Eu estou bem! - sua voz sai cortada; seu corpo treme visivelmente de frio. - Não posso Jeremy, ele vai ficar bravo. Ele não pode ficar mais doente...
- Do que você está falando? - grito, mas ela balança a cabeça, repetindo a mesma coisa. 
Lágrimas escorrem por seu rosto, e o corte lateral se abriu novamente, o sangue escorre junto com as gotas de chuva. Seguro sua mão gelada, puxando-a. - Você tem que sair daqui. - mas minhas palavras são cortadas por um raio; fazendo Lize tapar os ouvidos, se encolhendo. Começo a andar, mas não enxergo nem um palmo a minha frente. Se não fossem as trovoadas seguidas de clarões, não conseguiríamos chegar ao celeiro. Alguma das mulheres mais preparadas, trazem cobertores para nos aquecermos, mas posso ver nos olhos delas que sentem receio de ter Lize por perto. 
- O que você estava tentando fazer, moça? - o velho Dinks pergunta, como se não visse os olhares tortos para o seu lado.
- Meu pai... - Lize treme tanto que mal consegue falar. Ela dirige seu olhar para mim, como se se desculpasse. - Ele não vai gostar nada disso!
Dinks da uma risada, balançando a cabeça. - Acho melhor a senhorita ir para casa, agora. Não é bom que você fique aqui com...
Ele não termina a frase, mas é obvio o que ele quis dizer. 
- Eu não me importo! - diz Elizabeth, seria. - É melhor eu ir para casa mesmo, mas não me importaria de ficar aqui com vocês.
Algumas pessoas cochicham, em descrença. Com um sorriso, ela devolve o cobertor a Dinks, dirigindo-se a entrada do celeiro. Antes de sair, mais uma vez ela me olha, mas desta vez, não vejo emoção alguma nele. Fico arrepiado. Seu olhar é mais frio do que a chuva que continua a cair lá fora.
#Continua 

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