23 de dezembro de 2016

Capitulo 2 Alma Negra

Capítulo 2
- Ele se recusa a tomar o remédio, doutor. - digo assim que ele termina de examinar papai.
Meu pai resmunga para o medico que ele não precisa de nada dessas porcarias. Com um olhar sério ele me chama em um canto do quarto.
- Você pode mandar ele para uma causa de repouso - sua voz é baixa, e sinto seu bafo de Whisky - Se quiser é claro!
- Não posso fazer isso doutor. - seus olhos se desviam para meu decote. - Ele é meu pai. - digo, ríspida.
- Ele agrediu a senhorita, quem sabe o que mais ele fará?
- Deixe que disso cuido eu! - Abro a porta do quarto para ele ir embora.
- Teimosa igual ao pai! - Colocando o chapéu ele se despede, dando passagem a minha irmã que caminha, apressada. 
- Como está o papai, Lize?
- Vai indo... - com seu jeito dramático, ela revira os olhos para mim. - O medico receitou outro remédio, disse que esse vai funcionar.
- Ora, irmãzinha, deixe de ser careta, a medicina hoje é muito avançada, ele deve saber o que faz! - com um sorriso irônico, ela vira o rosto, sentado-se na beira da cama de papai.
- Já volto. - digo, saindo sem fazer barulho.
A chuva bate contra o vidro das janelas, me assustando. Os galhos das árvores dançam com o vento que uiva em meus ouvidos, a chegada do inverno é sempre brusca por aqui. Enquanto caminho pelo corredor escuro, ouço ao longe, vozes alteradas; descendo as escadas depressa, atravesso a sala de estar e abro com tudo a porta da varanda, a chuva açoita meu rosto e minhas pernas. meu vestido solto cola no corpo, encharcado, nos meus primeiros passos. Os trabalhadores correm de um lado para o outro, gritando ordens...
- Oh, não.... - uma pluma pequena de algodão passa por mim, carregada pelo vento forte. 
As lonas que cobriam os sacos de algodão nos caminhões balançam pelo ar, espalhando tufos brancos por toda parte. Homens e crianças correm pelo campo, tentando juntá-los.
Jeremy está entre eles e quando seus olhos cruzam com os meus, ele sorri abertamente quando olha para a região abaixo dos meus ombros. Sinto minhas bochechas esquentarem, mas sorrio também. 
- Quando teremos nossa próxima aula, senhorita? - sem perceber, ele se aproxima de onde estou. Seus olhos travessos vagueiam por minhas pernas descobertas. 
Não falo nada, apenas dou de ombros, continuando a juntar os maços de algodão. Meu pai com certeza vai ficar louco quando ver isso. O algodão não pode ser vendido molhado, e uma safra inteira seria perdida... 
- Meu pai não vai gostar nada disso... - murmuro.
- Você está bem? - sei que ele se refere ao que aconteceu a alguns dias, mas não quero falar sobre isso. 
- Estou... - grito por cima do barulho da cuva, mas antes que eu termine de falar, sua mão segura meu rosto, expondo uma marca rocha e com sangue seco no lado direito de minha face. - Vou ficar bem. - concluo.
A chuva continua caindo com fúria, castigando a terra seca. Fios de água gélida escorrem pelos meus braços e cabelo, e pela primeira vez, paro para pensar no que realmente Jeremy significa para mim. Não posso dizer que temos um relacionamento, nem mesmo de amizade. Fico sempre tão confusa quando penso nisso. Tenho medo... 
Nas ultimas vezes que nos falamos, ele estava tão diferente; interessado, atencioso e engraçado. Agora, ao olha-lo debaixo de uma chuva torrencial, com um saco em mãos, catando tufos de algodão pelo chão, não sei dizer quem ele é. Ou de onde veio. A única coisa que sei, é que: por mais distante que ele fique de mim, sempre tenho a impressão de que ele me observa. Que ele sempre está por perto...
***
- Merda! - digo ao erguer o olhar para o campo.
Não adianta de nada o que estamos fazendo, essa safra de algodão já era. A chuva e o vento espalham algodão por todos os lados, lembrando um dia de neve. O patrão vai ficar uma fera, e a maioria de nós será demitido, com certeza. Como se tivéssemos culpa. Quando o saco de algodão já está cheio, começo a dizer para Lize que não adianta de nada nossos esforços, mas ao erguer o olhar, não a vejo em lugar nenhum. Corro até o celeiro, onde já estão abrigadas mulheres e crianças; o vendaval destruiu alguns barracões, deixando-os sem teto para se proteger da chuva. 
Largo o saco em um canto seco do celeiro, ainda procurando Lize entre as pessoas, que chegam aos poucos, e tentando torcer minhas roupas molhadas. O ar frio do inverno começa a dar as caras, e hoje é uma noite realmente fria. Algumas crianças se encolhem no colo de suas mães, outras deitam sobre a palha seca espalhada nas baias fazias.
- Jeremy! - Lucas, um rapazinho magrela de 10 anos, puxa minha camiseta encharcada, chamando minha atenção. - O que ela está fazendo? - ele aponta o dedo comprido na direção fora do celeiro, onde já não se vê ninguém tentando juntar o algodão. Apenas, lá longe, um borrão branco, movimentando-se no meio das fileiras caídas. Estreito os olhos para ver melhor.
- Mas o que... - quando finalmente vejo quem é, abro passagem por entre os curiosos que observam Lize no campo; alguns até mesmo riem e zombam.
- Olha lá papa - ri Lucas - Não é a filhinha do patrão?!
Um relâmpago clareia o céu e um estouro faz com que muitos dentro do celeiro gritem. Algumas das telhas dos barracões voam para longe, as luzes piscam e vejo a filha do patrão, Luna, sair para a varanda, procurando seu cachorro peludo, que chora e arranha a porta da casa. Fico esperando que ela veja ou ao menos note Lize sozinha no meio da tempestade, mas assim que pega seu cão, entra, deixando a porta bater atrás de si. 
Lutando com minha própria consciência, corro para o meio da tempestade. Os pingos de chuva batem contra minhas costas e sinto meu corpo se arrepiar de frio. 
- Lize! - chamo, mas é impossível ouvir minha voz. Continuo a correr, me aproximando da figura abaixada de Lize, a barra de seu vestido está sujo de lama e seu rosto, escondido atrás de seus cabelos molhados. Mais um raio clareia o céu, e o estouro é ensurdecedor. Escorrego na terra lamacenta, quase caindo. 
- Lize! - ao ouvir minha voz, ela ergue o rosto sujo de terra. - O que está fazendo? Você está louca, vai ficar doente!
- Eu estou bem! - sua voz sai cortada; seu corpo treme visivelmente de frio. - Não posso Jeremy, ele vai ficar bravo. Ele não pode ficar mais doente...
- Do que você está falando? - grito, mas ela balança a cabeça, repetindo a mesma coisa. 
Lágrimas escorrem por seu rosto, e o corte lateral se abriu novamente, o sangue escorre junto com as gotas de chuva. Seguro sua mão gelada, puxando-a. - Você tem que sair daqui. - mas minhas palavras são cortadas por um raio; fazendo Lize tapar os ouvidos, se encolhendo. Começo a andar, mas não enxergo nem um palmo a minha frente. Se não fossem as trovoadas seguidas de clarões, não conseguiríamos chegar ao celeiro. Alguma das mulheres mais preparadas, trazem cobertores para nos aquecermos, mas posso ver nos olhos delas que sentem receio de ter Lize por perto. 
- O que você estava tentando fazer, moça? - o velho Dinks pergunta, como se não visse os olhares tortos para o seu lado.
- Meu pai... - Lize treme tanto que mal consegue falar. Ela dirige seu olhar para mim, como se se desculpasse. - Ele não vai gostar nada disso!
Dinks da uma risada, balançando a cabeça. - Acho melhor a senhorita ir para casa, agora. Não é bom que você fique aqui com...
Ele não termina a frase, mas é obvio o que ele quer dizer. 
- Eu não me importo! - diz Elizabeth, seria. - É melhor eu ir para casa mesmo, mas não me importaria de ficar aqui com vocês.
Algumas pessoas cochicham, em descrença. Com um sorriso, ela devolve o cobertor a Dinks, dirigindo-se a entrada do celeiro. Antes de sair, mais uma vez ela me olha, mas desta vez, não vejo emoção alguma nele. Fico arrepiado. Seu olhar é mais frio do que a chuva que continua a cair lá fora.
#Continua 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente o que quiser,
Me ajude a melhorar o blog para você!